13
Fev 10

 

Pequenos pormenores como aquele deixavam-no extremamente preocupado. Como pudera ter ignorado a ilha de Sanchoão no mapa, ali mesmo à sua frente? Não se conformava. E sabia de antemão que estavam ao largo daquela ilha. Havia poucos dias, ainda, tinha recordado o percurso de S. Francisco Xavier pelo Oriente...

Detestava-se a si mesmo por tais deslizes. Nem se preocupava sequer com o que os outros pudessem pensar. Simplesmente, não tolerava tamanha distracção. Parecia-lhe inadmissível. Era-lhe insuportável não ter notado algo tão lógico e evidente!

O casal japonês notou a perturbação que  se apoderara dele. Entreolharam-se. Perceberam que o estrangeiro tinha de facto muito que aprender. Mas não sobre áridas minúcias ou inconsequentes considerações eruditas. Teria que aprender mais sobre si próprio. Teria de saber aceitar as suas próprias limitações, os seus próprios defeitos. Teria de aprender a crescer dentro de si próprio.

Entreolharam-se novamente. Em silêncio, haviam concordado numa maneira de enfrentar a perturbação do estrangeiro e de contornar aquela situação embaraçosa.

O antiquário dirigiu-se para uma larga mala de porão que, contrariando o seu nome, se encontrava encostada à parede do camarote. Estava colocada ao alto e abriu-se como um livro. De uma prateleira interior, retirou uma pequena caixa de madeira. Trouxe-a na palma das mãos até ao estrangeiro, sorrindo. "Uma pequena recordação da minha terra." disse, estendendo os braços, "Aceite-a, por favor."

Olhou para a caixa que lhe era estendida. Uma caixinha rectangular com madeiras exóticas embutidas. De um lado, um pequeno pássaro, do outro uma vista distante do Fuji. Tentou abri-la. Não conseguiu. Seria apenas uma peça decorativa? "É uma caixa de segredo", ouviu, "É preciso tempo e paciência para se aprender a abrir uma destas caixas..."

Nessa altura, já a esposa do antiquário se dirigia para ele com outro objecto. Ah! Aquele era conhecido. Um leque de charão. Mas nova surpresa lhe estava reservada. O japonês acrescentou: "Agora, aceite uma recordação da terra para onde vai, esse pequeno grão de areia no velho e vasto Império do Meio..." A japonesa, silenciosa e sorridente, abriu o leque. Ficou perplexo! As varetas desdobravam-se à sua frente, arredondadas e vazias, como espinha de raia no fim de uma refeição... De que serviria um leque sem seda ou o cetim? Sorrindo, ainda, a japonesa observou: "Um leque destes lembra-nos o resto da nossa vida, os anos que ainda temos para viver, aquilo com que queremos preencher esse espaço. Sempre poderemos escolher o tecido e a decoração a nosso gosto..."

  

 

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publicado por blogdaruanove às 09:40

11
Fev 10

 

Abraçava Boubouka de olhos fechados. Contudo, via-a. Mas parecia-lhe outra. Morena, sim, mas de olhos amendoados. Uns olhos que lhe davam um olhar ainda mais doce. Um olhar rasgado, misterioso, oriental. Aparecia agora à distância. Trazia consigo uma bilha e sorria, como Boubouka sempre sorrira. Mas esta era uma outra Boubouka, adolescente, quase criança. Caminhava para ele, ondulando as vestes beduínas. Caminhava lentamente, abrindo os braços, carinhosamente. Aproximava-se deixando ver  os lábios carnudos, prontos a beijar. Um beijo dado à distância... O beijo voava. Voava para ele. Transformava-se em palavras. Palavras pequenas, silenciosas. Que cresciam, atroando o ar, atordoando-o. "Quem és tu?... Quem és tu?..." As palavras envolviam-no. Estava rodeado de espessa neblina.

"Não sei, não sei... Não  me perguntes!" Ouvia-se a si próprio. Gritava.

A neblina ganhava contornos dourados. E pétalas. Dezasseis pétalas. Parecia um crisântemo. Um crisântemo cheirando a saké. As pétalas desdobravam-se. Eram agora trinta e duas e começavam a girar. Uma pequena sombrinha de seda e finas varas de bambú, girando, girando. Viu-se no sopé do monte Fuji, admirando as cerejeiras em flor. As pétalas, de um rosa quase branco, caíam. Eram flocos de neve. Uma neve seca, leve. Estava frio, mas tinha sede. Juntou as mãos para derreter a neve, tentando sorvê-la entre os dedos, unidos em concha.

Levantando o rosto, para beber, viu que a sombra provinha das folhas de uma tamareira. Estava no deserto. Ao longe, caminhando lentamente, alguém trazia uma bilha. Água, concerteza. Era Boubouka, de novo, sorridente. Entreabriu os lábios para receber a dádiva. Ansiava pela frescura daquela água.  Não poderia resistir muito mais. Estendeu os braços, as mãos, os lábios. Recebeu um beijo. E deslizou na escuridão, deixando-se envolver pela noite.

 

 

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publicado por blogdaruanove às 20:44

06
Fev 10

Caïro, cerca de 1936

 

Boubouka sorriu quando regressou e viu  a chaleira de cobre colocada sobre a mesinha. "Hmmm, chá de menta..." Encontrara-o de bruços, sobre o leito, ainda completamente vestido. Tivera tempo de preparar a infusão e de beber um pouco, mas sucumbira logo depois. Junto da mesinha, o narguilé, na sua verticalidade bojuda, parecia um sacerdote. O sagrado sacerdote do silêncio. Hierático e digno, depois do sacrifício. Ao lado, no chão, uma das suas últimas obsessões, o Culto do Chá, do velho Wenceslau, aberto como uma tenda. Soubesse ela Português e teria achado irónica a passagem das páginas em que o livro ficara aberto – "Aponta-se-lhe mais outros condões: excita ligeiramente o organismo, combate o cançaço das vigilias, predispõe ao bem estar, infiltra no cerebro nao sei que subtil embriaguez, lucida todavia, que nos torna mais affectivos ás sensações de agrado e mais aptos ás elaborações do pensamento." 

Assim, ficou-se apenas pelo pensamento, igualmente irónico "Menta... não é suficientemente forte para ressacas, habibi..." Voltou a colocar o véu e saíu, dirigindo-se para o souk. "Tamr hindi, precisas é de um bom trago de tamr hindi, querido..."

Quando regressou, envolta no aroma das especiarias, encontrou-o já na varanda, alheio ao ruído da cidade e aos apelos do muezzin. Sorriu-lhe docemente, recebendo dele um olhar embaraçado... "Fiz chá de menta...", disse ele num sussurro. Boubouka sorriu ainda mais, e mostrou-lhe uma mão cheia de tamarindos. "Precisas de algo mais forte, habibi..." Ele ainda lhe começou a traduzir Wenceslau, querendo evocar as virtudes e condões do chá. Sabes, diz aqui que "O chá japonez tem a virtude de mitigar a sêde. Assim se explica o habito dos japonezes não beberem agua; mesmo na força dos calores, em pleno agosto, a chavena de chá, saboreada a goles, lhes dá pleno consolo..." Mas o sorriso dela deixou-o sem vontade de argumentar. "Precisas de uma bebida fresca, ácida e estimulante, habibi. Não estamos no Japão. Confia em mim, deixa-me tomar conta de ti..."

 

Photo © Solil

 

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publicado por blogdaruanove às 20:46

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