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Fev 10

 

A bruma da manhã parecia retirar qualquer contorno às escotilhas, mas uma luz forte e quase insuportável entrava no camarote. Por entre as pálpebras, cerradas e doridas, um nome veio-lhe à memória. Yoshitaki. Dolorosamente, entreabrindo os olhos, reparou no cartão. Apresentado com as duas mãos, quase reverentemente, havia alguns dias. Sim, tinham-se cruzado pela primeira vez havia alguns dias. Yoshitaki era o nome do antiquário japonês. Recordou ter-se divertido com o nome, pois pensara logo naqueles cogumelos secos que apareciam nos mercados exóticos. Os cartões de visita não eram muito habituais no oriente, entre particulares. Eram, contudo, noblesse oblige naquela profissão. Recordou também o seu embaraço fingido, quando se desculpou por ainda não ter cartões. Que só os mandaria imprimir quando se instalasse em Macau... Uma desculpa para não lhe entregar um dos antigos.

Levantou-se e tomou o pequeno-almoço com o casal. Inevitavelmente, a conversa acabou por abordar o negócio. Que tinham corrido bem as vendas, na Europa. Excepto pelos netsuke. Parecia que os ocidentais não gostavam de netsuke em madeira. Sem olhar ao preciosismo da escultura, preferiam sempre o marfim... Haviam vendido todos os de marfim e regressado com quase todos os outros. Mostrou-se curioso. Nunca tivera nenhum na mão, embora tivesse já visto alguns em museus. Por discrição, disseram-lhe que poderia ver alguns no camarote. Acompanhou-os.

Mostraram-lhe o que não tinham vendido. De uma caixa lacada e dourada saíram pequenas bolsas de tecido aveludado. De cada bolsa saíram pequenas esculturas. Madeira, madrepérola, marfim. Pequenas preciosidades, representando animais, frutos, guerreiros, personagens de teatro... Faziam-lhe lembrar a figurinha de marfim que trazia sempre consigo. Há gerações na família, haviam-lhe dito que era uma peça medieval, representando um mártir. Uma pequena figura esquecida de um pequeno díptico perdido. Encantado, perguntou se lhe cederiam alguma peça. Anuíram, cerimoniosamente. Acabou por adquirir uma pequena escultura em madeira e marfim, com uma assinatura em madrepérola. Disseram-lhe que representava um daymio, um senhor do Japão feudal.

Animados com o interesse do estrangeiro, desencantaram ainda outras preciosidades. Entre elas, um mapa francês do século XVIII, mostrando a região por onde navegavam. Já quase nas imediações de Macau.

Notou que se aproximavam a bombordo das ilhas que antigamente se chamavam dos feiticeiros. Mais a norte, a estibordo, ficavam as ilhas dos ladrões. Foram aqueles os primeiros detalhes que viu no mapa. 

Sorriu ironicamente. Alguns povos orientais veriam naquilo uma premonição ou um mau agoiro. Ele achou aquele acaso simplesmente curioso.

 

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 09:48

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