04
Mar 10

 

Levantando o olhar, viu que Liang trazia nova oferta. Uma peanha de mogno polido, com um recorte interior onde o mosqueado da madeira se diluía. Liang passou-a para as mãos do tio-avô, retirando-se novamente. Quando regressou, os seus dedos brancos e esguios fundiam-se com a beleza e a graça de uma cabeça em porcelana.

Tchang recebeu-a e colocou-a cuidadosamente na peanha, entregando-lha depois com um silêncio solene. Era uma cabeça quase tão grande como a de uma pequena criança, retirada provavelmente de uma antiga estátua de grandes dimensões. Não fez qualquer pergunta quando a recebeu. Apenas sorriu. E então viu o sorriso no rosto de Liang, que se assemelhava ao que tinha entre mãos. Um sorriso ténue, mais do olhar que dos lábios.

Nada perguntou depois sobre a origem da cabeça nem sobre o seu significado. E nada lhe disseram. Mas lembrou-se de Matsu e do templo de A-Ma. Matsu, a deusa dos mares, dos pescadores e dos mareantes.

No sudoeste da península, rodeado de árvores, o pequeno templo surpreendera-o na primeira visita. No interior, a escuridão das  pedras consagradas ressaltava inesperadamente e as suas inscrições ofereciam-se ao olhar. O vermelho-vivo, as cores gritantes, os aromas, tornavam o ambiente feérico e davam-lhe uma sensação de vertigem e enjôo. Tivera que sair, rapidamente, para acalmar o olhar. E a calma sobreviera quando dera as costas à colina da Barra e se virara para o mar. Então, com os olhos embalados no movimento das ondas que quase se fundiam com o céu, o enjôo foi-se desvanecendo. 

Talvez agora aquele rosto e aquelas memórias fossem um sinal. Talvez estivesse na hora de conhecer as ilhas e de ir até Hong-Kong... 

publicado por blogdaruanove às 23:53

03
Mar 10

 

Por entre os aromas, as cores e as vozes, o rosto de Liang ergueu-se. Uma sorridente lua cheia, pairando por instantes sobre a mesa, iluminando o enlevado olhar do convidado. Um olhar que se perdia nos movimentos suaves que a faziam levitar e a levavam para além da sala.

Regressou pouco depois, acrescentando solenidade ao sorriso quando entregou uma pequena caixa de madeira a Tchang. O ancião recebeu-a com cerimónia, sorrindo também para Liang. "Obrigado, Xue", disse. Estranhou aquele tratamento, que misturava duas línguas e lhe lembrava o chamamento que pela primeira vez o levara a entrar na loja.

Tchang estendeu então as duas mãos para o convidado, oferecendo-lhe a caixa com grande solenidade. Recebeu-a, aguardando as palavras que deviam acompanhar a oferta, como era tradicional. E as palavras vieram, breves e sincopadas. "Para que deixe a sua marca onde quiser e quando quiser. Um pequeno sinete. Por favor aceite-o como prova da nossa amizade."

Aceitou em silêncio, sorrindo e baixando levemente a cabeça. "Aceito, com grande regozijo pela nossa amizade", disse depois. E nada mais acrescentou. Sabia que o resto da satisfação deveria ser traduzida por gestos e expressões de admiração perante o objecto.

Notou que a caixa era folheada a madeira de carvalho. Madeira de veios largos e longos, madeira de árvore velha. Poderiam ter utilizado qualquer uma das muitas e preciosas madeiras orientais. Mas não, haviam escolhido precisamente o carvalho. Madeira que teria vindo da Europa, ou então do Japão. Não era comum na China. Sabiam o seu significado para os europeus.

Levantou cuidadosamente a tampa. No interior, entre a sumptuosidade de um veludo carmim e o aroma da cânfora, estava o sinete. Uma peça delicada, com um dragão cinzelado em espiral. Símbolo da longevidade. Levantou os olhos para Tchang, que leu o agradecimento no seu olhar e lhe disse: "Está em branco, para que possa colocar as iniciais que entender, quando entender".

Lembrou-se do leque em branco que lhe haviam oferecido no Sibajak e das palavras que acompanharam a oferta: "Um leque destes lembra-nos o resto da nossa vida, os anos que ainda temos para viver, aquilo com que queremos preencher esse espaço. Sempre poderemos escolher o tecido e a decoração a nosso gosto..."

Liang olhava-o também. E assim ficou o seu olhar, suspenso entre Tchang, o sinete e Liang. "Em que estás a pensar?", perguntou a si próprio. Não, não queria pensar, nem queria sentir.

 

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publicado por blogdaruanove às 14:22

02
Mar 10

 

À entrada, estendeu a Tchang a tacinha de prata, que a recebeu juntando as mãos, honrando a oferta como se honrasse o convidado. Delicada e atenciosamente, virou a sampana para ver o fundo da taça, onde estava a imagem de Chang Kai-Chek. "Aah! Wai Kee...", murmurou, sorrindo, ao ver a marca do ourives.

Fez depois um gesto a uma serviçal, entregando-lhe cerimoniosamente a taça. Esta lavou-a uma e outra vez, secando-a e enchendo-a com uma bebida cor de mel. Entregou-a de seguida ao convidado. Tchang acenava-lhe levemente, sugerindo que a aceitasse. "Seja bem-vindo! O que era seu passou a ser meu, a nossa refeição passará a ser a sua."

Bebeu. Um líquido fino e adocicado, que escorria tão facilmente como a água. Devolveu a taça à serviçal, que de novo a lavou e encheu, entregando-a a Tchang. Só então Liang se aproximou, saudando-o respeitosamente. O seu olhar deixava transparecer uma alegria íntima que mal se notava no sorriso. Recebeu o envelope vermelho das mãos do convidado com o recato que se esperava dela, obtendo antes, com o olhar, a aprovação do tio-avô.

Outra serviçal veio receber o terno enfeitado que ele também acabara por trazer, levando-o para a cozinha. Enquanto a porta se abria e fechava, os aromas da comida chegaram à sala e a vertigem que sentira nas ruas voltou. Tudo se misturava, tudo era indefinido, nada tinha um só cheiro.

Mal conseguira chegar à mesa e mal se sentara quando a comida começou a ser servida. Carnes preparadas de mil e uma maneiras. Não conhecia a maior parte dos pratos. Foram-lhe dizendo. Capela de porco, galinha assada, galinha kai-pin, inhame chau-chau com lap-yôk, lacassá, ló-pak-cou, margoso lorcha, missó cristão, pato pák-sáp, chau-chau de pele. Uma explosão de vapores, de aromas e de cores.

A vertigem continuava com os vegetais, o peixe e o cheiro de balichão nos temperos. Couve recheada, couve-flor frita, chai de bonzo, yeu pin, casquinha de caranguejo. E prolongava-se com os doces. Genetes, doce de camalenga, fatias da china, doce de cha-cha, saransurável. Ainda não provara nem metade de tudo aquilo e já se sentia satisfeito.

Mal seguia as conversas, mal recordava as palavras. Apenas via com clareza expressões de satisfação e sorrisos nos rostos que o rodeavam.

 

 

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publicado por blogdaruanove às 14:19

01
Mar 10

 

As ruas que conseguia distinguir de sua casa haviam desaparecido. Eram agora um conjunto vivo de linhas onduladas e estonteantes, saindo de corpos comprimidos, soltando sons desencontrados. Os diálogos pareciam solitários monólogos perdidos entre a neblina que saía de todas aquelas bocas. Estava a ficar frio. Voltou a ter arrepios. Nunca sentira frio nas ruas de Macau, nem mesmo em Janeiro, quando as noites haviam chegado a ter temperaturas negativas.

Olhava atónito para o hálito translúcido e apressado que acompanhava cada frase. Não se arrepiava por causa do frio. Arrepiava-se por todos aqueles sons que lhe causavam estranheza. Parecia ter esquecido todas as frases e todas as palavras aprendidas até ali. Aquelas pessoas falavam agora de coisas de que nunca falavam ao longo do ano. Perdida a linha familiar das ruas, só os aromas lhe diziam que sim, que aquela era a mesma cidade que ele julgava conhecer.

Parou, encostando-se às colunas de S. Domingos. O trajecto entre sua casa e a loja de Tchang era curto, mas nunca lhe parecera tão longo. Parara porque necessitava de se preparar. Não sabia o que poderia esperar daquela celebração. Tchang e Liang, que lhe pareciam tão familiares, poderiam parecer-lhe tão estranhos como estranhas lhe pareciam agora as ruas e a cidade.

Inquietou-se. Levou as mãos aos bolsos, verificando os pequenos presentes. Ficou inseguro. Sentir-se-iam insultados por eles? Imaginava o seu ar constrangido e embaraçado quando duas figurinhas se aproximaram, ondulando entre a multidão. Faziam lentas e respeitosas vénias, sorrindo levemente. Ao fundo, atrás delas, estava Tchang, também sorridente. Aguardavam-no, já. À porta de casa, em sinal de cerimonioso respeito.

Então ele, um estranho, um estrangeiro naquela cultura, endireitou-se e dirigiu-se, também sorridente, em direcção a Tchang, enquanto as frágeis figurinhas iam abrindo caminho. Pareciam ter a dignidade de duas pequenas esculturas animadas, duas esculturinhas Fu, saídas de alguma grande casa senhorial. 

 

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28
Fev 10

 

Lá fora o barulho das celebrações continuava. A multidão percorria as ruas em êxtase, numa alegria inconcebível para a maior parte dos chineses noutros dias, sem saber muito bem para onde ia, nem porquê. Muitas pessoas pareciam andar pelas ruas sem destino. Tal como ele parecia divagar sem qualquer finalidade.

Teria que se levantar e sair, para honrar a promessa feita a Liang e agradecer a hospitalidade de Tchang. Mas o esforço parecia-lhe enorme. Levantar-se. Convencer-se que teria de movimentar o corpo, que teria de conviver com outras pessoas... Parecia-lhe inútil a conjugação de todo aquele esforço. Sentiu-se tão minúsculo como um netsuke. Encerrado na caixa de segredo que lhe haviam oferecido, era um daymio erecto, de madeira dura, mas sem espada. Um daymio que se fundia com o labirinto de madeira perfumada e macia da caixa, diluindo-se nos aromas que dela se evolavam...

Ergueu-se. Caminhou para as janelas e abriu as gelosias de cima, de par em par. Deixou que a luz o magoasse, entrando-lhe pelos olhos bem abertos. Olhou para as ruas, para  a multidão, para o mar, deixando-se penetrar pela luz e pelo ruído. "Em que estás a pensar?" Sorriu. "There are more things, Horatio..." Shakespeare recordado e treslido, um sonho de uma noite de verão num fim de tarde oriental. Sentir e recordar era melhor que pensar.

Sentiu vontade de se perder na multidão, de ser levado sem destino por aquela torrente.

Irreflectidamente, despiu-se e ficou na penumbra, sentindo a aragem que vinha da rua. Esteve assim breves momentos, até sentir a pele arrepiada. Lavou-se depois com água tépida. Fez a barba uma e outra vez, escanhoando-se aqui e ali. Afinal, era Ano Novo. O seu primeiro Ano Novo Chinês!

Surpreendeu-se com o murmúrio cantarolado que lhe ia saindo das narinas. Viu no espelho o esboço de um sorriso de satisfação. Afinal estava contente...

Vestiu-se e precipitou-se para as escadas, descendo ritmadamente os degraus, de dois em dois, e voltando às vezes atrás, como se estivesse a ensaiar um passo de dança.

Entrou na rua como se aquele fosse o seu mundo e nunca tivesse estado em nenhum outro sítio. Aquele era o seu mundo, aquela era a sua vida. Ninguém mais a poderia viver, ninguém mais a poderia sentir.

 

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publicado por blogdaruanove às 16:11

27
Fev 10

Macau, cerca de 1937.

  

Deitou-se novamente, atravessando-se na cama. A visão familiar da ventoinha alinhada com os seus olhos parecia-lhe agora inquietante. Perplexo com esta impressão contraditória, levantou-se para ligar o interruptor. Alongou-se depois desde a cabeceira até aos pés da cama, de olhos abertos, deixando-se hipnotizar pela monótona sonoridade do motor e pelo movimento quase imperceptível da hélice. Ficou assim durante alguns momentos, alheado de tudo, concentrado apenas naquele zunido circular. Ficou, assim, sem pensar em nada.

"Em que estás a pensar?", perguntavam-lhe em rapaz, quando o viam alheado. "Em nada", respondia. "Em nada?", perguntavam com expressão de surpresa e desdém, "Como é possível pensar em nada?" E tinham razão. Ao fim de algum tempo acabava sempre por pensar... em algo.

Muitas vezes, aquilo em que pensava acabava por ser um rememorar do que não fizera, ou do que não dissera, e deveria ter dito, ou feito. Um deve e haver desequilibrado, em que sempre ficava a dever algo ao passado e àquilo que não havia feito, ficando sempre em dívida para consigo mesmo.

Voltou a pensar em Boubouka. Teria gostado mesmo dela? Teria ela gostado dele, apesar daquele seu desapego, tão invulgar nas mulheres latinas? Tinham sido um do outro, como se nenhum deles quisesse ser dono do outro. Não tinham havido promessas nem compromissos... Mas então, por que lhe teria ficado aquele sentimento de desamparo e aquela sensação de promessa por cumprir?

Parecia-lhe que os movimentos da ventoinha apenas acentuavam a circularidade da sua própria reflexão, cercando-o, imobilizando-o e trazendo-o de volta ao ponto de partida.

Fechou os olhos, tentando desistir de ver ou de pensar.

"Em que estás a pensar?"

"Não estou a pensar, estou apenas a sentir."

 

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publicado por blogdaruanove às 14:07

26
Fev 10

 

Por vezes pensava que aquelas súbitas e inexplicáveis mudanças de humor raiavam a insanidade. Sentia-se em muitas ocasiões transportado para um mundo onde nada mais existia senão insatisfação e tristeza. E uma imensa saudade de vidas que nunca tinha vivido.

Parecia-lhe agora que as emoções da sua breve vida com Boubouka se sobrepunham à imagem de Liang, como se fossem uma projecção de momentos e sentimentos que nunca pensara partilhar, sequer, com Liang.  

Deitou-se de olhos fechados na cama, como se estivesse exausto, como se a luz que entrara pelas gelosias lhe tivesse sugado as forças. Lembrou-se de abrir os olhos, mas não conseguiu resistir à paz proporcionada pela cegueira avermelhada das pálpebras fechadas. Deixou o tempo passar naquele mundo que decidira não ver. 

Muito depois, abriu os olhos e viu a ventoinha parada, no tecto. Era uma visão estranha, aquela. Desde que chegara a Macau, habituara-se a ver as ventoinhas em constante movimento, no hotel. Das poucas vezes que as vira paradas, quando estava deitado, vira sempre as hélices alinhadas com os seus olhos, como que prolongando-se à esquerda e à direita. Agora, notava que estas hélices se alongavam da sua cabeça até aos pés, dando-lhe uma estranha sensação de desconforto. Era como se o medissem, como se fossem uma pequena fita métrica distorcida, encurtando-o e reflectindo aquilo que se passava dentro de si.

Estranhou-se a si próprio, ao insistir nestas ideias estranhas. Nunca se perdera assim dentro de si.

Ouviu o ribombar dos panchões. Levantou-se. Da varanda, via os intermináveis cordões de luz a estrelejarem, desaparecendo em sons que ecoavam pelas ruas até quase se perderem no mar.

Em baixo, por entre a multidão, viam-se as hap ló pairando sobre as cabeças ou esquivando-se entre as dezenas de pernas e braços. Hap ló! Tinha que levar uma lembrança para Tchang! Tinha que lhe mostrar a sua gratidão pelo convite e desejar-lhe as maiores felicidades para o novo ano. Deveria levar uma daquelas caixas de doces tradicionais ou antes um terno enfeitado, como faziam todos os macaístas convidados por chineses?

Para Liang seria fácil. Levar-lhe-ia algum dinheiro da sorte num pequeno envelope vermelho, como se fazia para as crianças e pessoas solteiras. Sorriu para si mesmo, corrigindo-se... Levar-lhe-ia algum lâi si num hong pau... Agora dava consigo a pensar nas duas línguas...

Lembrou-se depois de uma tacinha em prata que havia comprado. Achara-a curiosa. Representava uma sampana. Só quando a virara é que se apercebera da sua particularidade. Havia sido feita em Hong Kong, por Wai Kee, a partir de uma moeda chinesa de prata. Um dólar. A base era constituída pela efígie de Chang Kai-Chek. Seria certamente uma maneira delicada de desejar um bom ano a Tchang, sem o insultar com qualquer lâi si, inapropriado para a sua idade ou o seu estatuto.

 

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publicado por blogdaruanove às 16:03

25
Fev 10

 

Às oito. Saúde e fortuna...

Demorara a habituar-se. A simbologia oriental dos números era bastante distinta da ocidental. Inicialmente, estranhara a ausência  do três, da trilogia sagrada, entre os números da sorte. Depois notara que esse era precisamente o único número que não integrava nem a lista dos números da sorte, nem a lista dos números de azar. Um número único, portanto...

Ocorreu-lhe, então, brincar com o conceito da prova dos nove. Mil novecentos e trinta e sete. Noves fora, dois. O seu segundo ano em Macau. O segundo ano de uma vida que lhe parecia diferente.

Caminhara absorto neste jogo, tendo chegado a casa quase sem se aperceber do barulho ou da multidão. Haviam-lhe trazido a mobília na semana anterior. Mudara-se logo. Subia agora as escadas, estranhando o ranger quase murmurado da madeira. Nos outros dias, no maior silêncio das ruas, parecia-lhe insuportável e indiscreto aquele ranger. Estranhava hoje o quase silêncio dos degraus, como nos outros dias estranhava o seu ruído.

Deixara as gelosias fechadas, como se quisesse coar aquele barulho que o acordara manhã cedo. O barulho da multidão, o barulho da cidade, o barulho do ano novo. As paredes das salas pareciam feitas de uma luz baça, interrompida pelas sombras fortes, listadas, que entravam pelas janelas. 

Encostou a sua testa a uma das gelosias da varanda, fechando os olhos, tentando ver as sombras que entravam. Viu-se no Caïro. Viu o sorriso de Liang no rosto triste de Boubouka.

Não conseguiu suportar aquela imagem. Empurrou bruscamente as gelosias, abrindo os olhos à dor que a luz trazia.

Ofegante, fitou o mar, ao longe, diluindo naquela distância a sua dor. 

 

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publicado por blogdaruanove às 15:59

24
Fev 10

 

Surpreendeu-se com aquele olhar frontal e sorridente de Liang. Um farol no meio daqueles vultos ondulantes. Frágil, singelo, simples. De uma simplicidade intensa e poderosa. Um farol. Dois pontos de luz. Uma luz negra e hipnotizante. Nunca Liang havia olhado directamente para ele. Nunca Liang havia levantado os seus olhos para ele. Nunca. Nem na loja do tio-avô, nem na sua imaginação.

Mas agora, avançando entre a multidão, olhava-o bem nos olhos e sorria-lhe. Quando chegou junto dele baixou o olhar, continuando contudo a sorrir, com a cabeça bem levantada. A sua voz, também baixa e suave, parecia ouvir-se distintamente, sobrepondo-se ao ruído caótico daqueles milhares de vozes.

"O meu avó gostaria de ser honrado com a sua presença na nossa casa", sussurrou o  sorriso de Liang. E ele não via nada mais a não ser aquele sorriso. As próprias palavras do convite eram um sorriso, de aroma impossível, indizível, impondo silêncio e perplexidade.

Ouviu o silêncio do seu próprio aceno como se não soubesse falar, como se soubesse que quaisquer palavras seriam supérfluas e se diluiriam naquele sorriso. Um sorriso que era tudo e tudo absorvia. Liang viu a satisfação dele, adivinhando a sua concordância. "Às oito," disse, "às oito da noite na loja de meu avô." Pela primeira vez naquele dia dobrou-se perante ele, fazendo uma vénia e desaparecendo entre dezenas de outros sorrisos. Sorrisos de alegria aos quais faltava, no entanto,  a frescura mágica do rosto de Liang.

Nem sequer se questionou sobre a coincidência de encontrar Liang no meio da multidão. Nem sequer estranhou o convite. Não pensou sequer em todas aquelas estranhas coincidências. Aceitou-as como se aquele fosse o seu destino. Mais uma vez, deixava-se levar pela corrente...

Não sabia o que o futuro lhe traria, nem queria saber. Queria apenas lembrar o sorriso de Liang, um sorriso que ainda lhe enchia os olhos e o pensamento.

Dezenas e dezenas de panchões rebentavam ruidosamente pelas ruas, estrelejando, iluminando a felicidade que ia nos rostos, criando uma luz mágica que anunciava o novo ano. E ele, compartilhando aquela felicidade no seu rosto, sentia-se flutuar por entre a multidão, alheio a tudo e todos, transportado lentamente num pesado búfalo que parecia levitar...

 

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publicado por blogdaruanove às 14:55

23
Fev 10

 

"Logo à entrada ouve-se o canto do grilo...". Confúcio. Ocorreram-lhe estas palavras de uma canção de ano novo quando caminhava entre a multidão. Nan-ning!, Nan-ning!, diziam as pessoas, alvoroçadamente, nas ruas. Nan-ning!, Nan-ning!, diriam, certamente, centenas, milhares, milhões de pessoas, em Macau e na China, à chegada do novo ano.

Uma miríade de pequenos papéis, ondulando na brisa da manhã, transformava os desenhos dos búfalos num filme de Walt Disney, anunciando o novo ano. Manadas de búfalos, isolados e silenciosos, moviam-se desordenadamente entre as pontas retorcidas dos quadradinhos de papel, que mostravam o outro lado sempre que a aragem soprava com mais força. Desenhos esbatidos de búfalos, páginas onde os traços mal se viam, páginas quase em branco. Um memorando para as subtilezas e adversidades que poderiam surgir ao longo do ano.

Aquele dia surpreendia-o. Sabia de antemão que era o mais sagrado dos dias para os chineses, mas nunca esperara assistir a tamanha mudança, em Macau. As portas das lojas, que pareciam eternamente abertas, encontravam-se agora todas encerradas. As pessoas, que já se acotovelavam frequentemente durante os outros dias, pareciam agora constituir um vasto campo de arroz, de hastes unas e flexíveis, ondulando ao vento. Não parecia haver espaço entre elas, ocupando as principais ruas da cidade velha. Todos os rostos sorriam, como se nunca tivessem tido outras expressões.

Entre a cortina ondulante de rostos e sorrisos, entre a multidão, vislumbrou um rosto mais sorridente que os outros. Lembrava uma lua cheia de Janeiro, brilhando mais que a mais brilhante das estrelas. Uma lua cheia adornada de sedosas faixas de um negro inacreditável. Uma lua aromática, de cheiros inebriantes. Uma combinação quase impossível. Sândalo, jasmim, laranjeira. O seu luar perfumado encurtava distâncias, sobrepondo-se a todos os outros aromas, fazendo-o esquecer tudo o resto.

Era Liang, que caminhava de rosto levantado, olhando para ele e sorrindo. Sorrindo sempre.

  

Brinco de Leão (Seng Si ou Mou Si). Macau, cerca de 1937.

 

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publicado por blogdaruanove às 16:51

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