26
Fev 10

 

Por vezes pensava que aquelas súbitas e inexplicáveis mudanças de humor raiavam a insanidade. Sentia-se em muitas ocasiões transportado para um mundo onde nada mais existia senão insatisfação e tristeza. E uma imensa saudade de vidas que nunca tinha vivido.

Parecia-lhe agora que as emoções da sua breve vida com Boubouka se sobrepunham à imagem de Liang, como se fossem uma projecção de momentos e sentimentos que nunca pensara partilhar, sequer, com Liang.  

Deitou-se de olhos fechados na cama, como se estivesse exausto, como se a luz que entrara pelas gelosias lhe tivesse sugado as forças. Lembrou-se de abrir os olhos, mas não conseguiu resistir à paz proporcionada pela cegueira avermelhada das pálpebras fechadas. Deixou o tempo passar naquele mundo que decidira não ver. 

Muito depois, abriu os olhos e viu a ventoinha parada, no tecto. Era uma visão estranha, aquela. Desde que chegara a Macau, habituara-se a ver as ventoinhas em constante movimento, no hotel. Das poucas vezes que as vira paradas, quando estava deitado, vira sempre as hélices alinhadas com os seus olhos, como que prolongando-se à esquerda e à direita. Agora, notava que estas hélices se alongavam da sua cabeça até aos pés, dando-lhe uma estranha sensação de desconforto. Era como se o medissem, como se fossem uma pequena fita métrica distorcida, encurtando-o e reflectindo aquilo que se passava dentro de si.

Estranhou-se a si próprio, ao insistir nestas ideias estranhas. Nunca se perdera assim dentro de si.

Ouviu o ribombar dos panchões. Levantou-se. Da varanda, via os intermináveis cordões de luz a estrelejarem, desaparecendo em sons que ecoavam pelas ruas até quase se perderem no mar.

Em baixo, por entre a multidão, viam-se as hap ló pairando sobre as cabeças ou esquivando-se entre as dezenas de pernas e braços. Hap ló! Tinha que levar uma lembrança para Tchang! Tinha que lhe mostrar a sua gratidão pelo convite e desejar-lhe as maiores felicidades para o novo ano. Deveria levar uma daquelas caixas de doces tradicionais ou antes um terno enfeitado, como faziam todos os macaístas convidados por chineses?

Para Liang seria fácil. Levar-lhe-ia algum dinheiro da sorte num pequeno envelope vermelho, como se fazia para as crianças e pessoas solteiras. Sorriu para si mesmo, corrigindo-se... Levar-lhe-ia algum lâi si num hong pau... Agora dava consigo a pensar nas duas línguas...

Lembrou-se depois de uma tacinha em prata que havia comprado. Achara-a curiosa. Representava uma sampana. Só quando a virara é que se apercebera da sua particularidade. Havia sido feita em Hong Kong, por Wai Kee, a partir de uma moeda chinesa de prata. Um dólar. A base era constituída pela efígie de Chang Kai-Chek. Seria certamente uma maneira delicada de desejar um bom ano a Tchang, sem o insultar com qualquer lâi si, inapropriado para a sua idade ou o seu estatuto.

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 16:03

10
Fev 10

 

Debruçado, na amurada, deixava o olhar vaguear pela imensidão das águas. Uma imensidão agora marcada frequentemente pela linha montanhosa de inúmeras ilhas e ilhotas. Uma grande diferença da isolada vastidão do Índico, de que ele nem se apercebera. Os navios pareciam mais frequentes. Haviam-se cruzado já com o André Lebon, que fazia a ligação entre Marselha, a Indochina e o Japão. Lembrava-se ainda do que a imprensa europeia dissera do navio após o terramoto de 1923 e do auxílio que este prestara a Yokohama. Ao largo, muitas outras embarcações pontuavam o horizonte. Cargueiros, pequenos barcos de pesca, dezenas de  juncos.

Assestava os binóculos e perscrutava pormenores. Um passatempo comum entre os passageiros. A princípio ficou surpreso com a maioria destes barcos – não traziam bandeira ou pavilhão. Disseram-lhe que isso era habitual na navegação costeira e que muitos eram barcos de comunidades piscatórias, que não reconheciam qualquer soberania. Alguns outros, barcos piratas, mesmo. Quando surgia alguma bandeira, e agora era quase sempre a mesma, desde que se aproximavam das costas da China, tentava descobrir a que país pertenceria  a embarcação. Ficou confuso quando viu uma bandeira ostentando as cores que recordava como sendo de Manchukuo. Estavam demasiado longe da Manchúria para que isso fosse provável. E nem mesmo a rota comercial e militar que os japoneses haviam estabelecido alguns anos antes, para apoiar a ocupação, passaria tão a sul. Recordou então que a bandeira da Manchúria tinha adoptado as cores da China de Sun Yat-Sen. O amarelo, representando os manchús, ocupava o fundo, a três quartos, e as quatro listas limitavam-se ao canto superior esquerdo. Esta bandeira tinha cinco listas, de igual largura, e a todo o comprimento. Era a antiga bandeira da China. Riu-se de si próprio e da sua patetice, ao ignorar o óbvio. A nova bandeira, vermelha e azul, havia sido adoptada apenas em 1928 e provavelmente alguns pescadores ainda achavam que a antiga era válida. Ou então achariam que as duas eram válidas... Algo assim como ter dois ou três nomes diferentes, mas todos válidos... Um velho hábito chinês. Recordou, divertido, a perplexidade que havia sentido quando era criança e surgira a nova bandeira da república. E recordou, ainda, sorrindo, a confusão que um famoso pintor americano fizera, anos mais tarde, quando comemorou a vitória dos aliados e colocou na mesma tela, quase lado a lado, as duas bandeiras portuguesas – a monárquica e a republicana...

Voltou ao camarote. Decidira tomar algumas notas e registar impressões da viagem. Pegou na caneta de tinta permanente, desenroscando a tampa. Foi escrevendo, lentamente, "As velas destes pequenos juncos dos mares do sul da China..." A tinta verde dava uma tonalidade estranha à  letra cursiva que parecia adornar o papel. Escrevia as suas notas sempre a verde. Nos cadernos de viagem e no verso das fotografias. Todos lhe perguntavam o porquê daquela cor. Nunca soubera responder.

  

 

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publicado por blogdaruanove às 09:36

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