13
Fev 10

 

"Paternalismos. E moralizantes!", pensou. Para mais, vindos de japoneses! Japoneses que julgavam saber imenso sobre todos os europeus. Mas os japoneses, mais do que qualquer outro povo do oriente, deveriam saber que os portugueses eram diferentes. Portugueses e japoneses não poderiam ser mais iguais nas suas diferenças... Ambos os povos eram, inclusive, vorazes devoradores de peixe... Claro que o facto de este ser, ou não, servido crú não era pormenor de somenos importância... E ia torcendo ligeiramente o nariz enquanto assim pensava.

O casal japonês testemunhou apreensivo aqueles trejeitos faciais. Iria o estrangeiro recusar as ofertas? Nunca se sabia. Os gaijin podiam ser mesmo estranhos... Sorriram, aliviados, quando o viram baixar a cabeça e estender ambas as mãos para receber os presentes.

"Por que não?", pensara. Habitualmente recusaria presentes pelo simples facto de exigirem uma contrapartida. E esta era das piores... Uma pastilha de sublimado bem embrulhada, sem dúvida. Mas  aquele moralismo, aquele moralismo... Enfim. Os japoneses ficariam satisfeitos e ele daria uma prova de boa-vontade e adaptação a novos costumes. Estendeu os braços, sorridente, e baixou a cabeça. Agora viria o pior... Uma boa dúzia de arigatos, baixando e levantando a cabeça, baixando e levantando a cabeça, baixando e levantando a cabeça...

Abandonou os aposentos recuando, recuando lentamente e repetindo sempre os arigatos. Como ia de costas e se sentia zonzo de tantos agradecimentos, quase tropeçou à saída. Maldito rebordo!

Colocou os presentes na mesinha do seu camarote, deixando-se deslizar para a poltrona. Grande exercício, aquele... Provavelmente, teria que começar a preocupar-se com a tensão, também... Estava mesmo tonto de todo. Ao fim de alguns momentos, decidiu sair para o deck. A excitação da chegada a um novo porto deveria estar a animar os passageiros. E desta vez o porto era Macau.

Quais seriam as conversas? A agitação na China? A ocupação japonesa da Manchúria? A tentação do jogo nos hotéis? A sensualidade das bailarinas profissionais nos cabarets?

Falava-se, afinal, da chegada próxima do avião da Pan American Airways. O primeiro avião de carreira a escalar Macau.

Não se conseguiu conter. O seu pensamento voou. Voou novamente para o Caïro. Ainda e sempre Boubouka...

 

 

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publicado por blogdaruanove às 20:03

09
Fev 10

 

Acordou com Boubouka aninhada em si. Dormia, ronronando suavemente. Levantou-se com cuidado, para não a incomodar. Entrou no quarto de banho sem acender a luz. Tacteou, procurando a torneira. Um sonho preocupante acordara-o. Mas não se conseguia recordar de nenhum pormenor. Refrescou-se com água, fechou a porta e acendeu a luz, procurando uma toalha. Limpou-se lentamente, quase acariciando cada curva do rosto. Levantou a cabeça, retirando a toalha. O seu reflexo no espelho deixou-o perplexo. Tinha a barba crescida e completamente branca. Uma calva enorme e bronzeada. O rosto  moreno, gasto e cheio de rugas. Envelhecera décadas... Abriu ansiosamente a porta e voltou ao quarto, procurando Boubouka. Não estava ninguém na cama. Apenas os lençóis amarrotados, como se alguém os tivesse retorcido ansiosamente. Para lhes espremer desesperadamente todas as memórias. As memórias imaginárias de uma estreita e solitária cama de solteiro.

Soergueu-se no leito. A boca aberta, arfando, quase sem ar. As pulsações parecendo levar a resistência das veias ao limite. Este era  um sonho recorrente desde que deixara o Caïro. Um sonho dentro de um sonho. Não sabia quantas vezes já acordara assim, aflito, após ter embarcado novamente no Sibajak. Sentiu na cama o embate das ondas, o ondular do navio. Estava mesmo acordado. Tentou acalmar-se.

O tempo passara a ser algo de impreciso depois do Caïro.  O dia de hoje parecia  não existir, era o de ontem e o de amanhã. Os dias como um só. Não recordava refeições, não recordava rostos nem passageiros. Tudo era uma eterna neblina. Uma neblina interior que nem sequer a brisa marítima dissipava.  

"Sabang, Sabang!", anunciava o steward pelos decks. O som distante entrou pela vigia como o eco ensurdecedor de um gigantesco gongo. "Sabang!"

Parecia impossível! Estavam a chegar à Indonésia.

 

O navio Sibajak ancorado em 1936 no porto de Sabang, ilha de Weh, Indonésia.

  

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07
Fev 10

Caïro, a mesquita de Kalann. Aguarela reproduzida num postal italiano de 1917.

 

Vagem. Há quanto tempo não lhe ocorria aquela palavra... Uma palavra que lhe recordava sempre o verde, as hortas, a sopa de legumes que detestava e o obrigavam a comer quando criança... Os tamarindos que Boubouka trouxera lembravam-lhe vagens. Estas, no entanto, eram umas vagens castanhas, de casca rija mas macia, aveludada.

Engraçado. Durante imenso tempo, no seu entendimento inexperiente, tâmaras e tamarindos eram o mesmo. Só um dia, no souk, quando lhe mostraram as tâmaras secas, meladas e mirradas (os estrangeiros gostavam delas  inchadas, carnudas, por isso se passavam pelo vapor antes da exportação), lado a lado com a camurça castanha dos tamarindos, é que percebeu. Ao entardecer, em casa, foi a alegria da descoberta de uma nova textura e de um novo sabor. Boubouka abrira os tamarindos e dera-lhos assim, sem mais explicação. Ainda hesitou, procurando os talheres... Depois riu-se, de si próprio e dos seus preconceitos. Usar as mãos, de preferência a direita. A esquerda seria para outras tarefas e por isso menos indicada para comer, por ser mais impura.

Não sabia que fazer com aqueles longos fios que envolviam a polpa, até que Boubouka os retirara e lhe levara bocadinhos do fruto à boca. Um sabor adocicado mas também ligeiramente ácido... Um sabor a ameixa. Sim, ameixas. Ameixas secas! Mas não cláudias ou caranguejas, antes ameixas vermelhas, ou mesmo abrunhos. Depois, a inesperada impressão dos caroços... Enormes e de formato estranho! Pareciam dentes, dentes de mogno. A polpa quase não os cobria.

Agora segurava na mão cascas e sementes que já lhe eram familiares. Lembrou-se das crianças que vira mais tarde, na rua, brincando. Das brincadeiras simples das meninas. Num ápice, levantou-se. Lavou e secou as sementes. Fez um colar. Quando Boubouka regressou com o tamr hindi colocou-lhe o colar. Naquele pescoço de bronze o colar parecia uma jóia. Boubouka sorriu. Ele sorriu. Beijaram-se. Ele suspirou. Era feliz. Tinha mais de trinta anos e nunca havia sentido tal felicidade...

 

(http://www.flickr.com/photos/harshadsharma/)

Photo © Harshad Sharma

 

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publicado por blogdaruanove às 10:50

06
Fev 10

Caïro, cerca de 1936

 

Boubouka sorriu quando regressou e viu  a chaleira de cobre colocada sobre a mesinha. "Hmmm, chá de menta..." Encontrara-o de bruços, sobre o leito, ainda completamente vestido. Tivera tempo de preparar a infusão e de beber um pouco, mas sucumbira logo depois. Junto da mesinha, o narguilé, na sua verticalidade bojuda, parecia um sacerdote. O sagrado sacerdote do silêncio. Hierático e digno, depois do sacrifício. Ao lado, no chão, uma das suas últimas obsessões, o Culto do Chá, do velho Wenceslau, aberto como uma tenda. Soubesse ela Português e teria achado irónica a passagem das páginas em que o livro ficara aberto – "Aponta-se-lhe mais outros condões: excita ligeiramente o organismo, combate o cançaço das vigilias, predispõe ao bem estar, infiltra no cerebro nao sei que subtil embriaguez, lucida todavia, que nos torna mais affectivos ás sensações de agrado e mais aptos ás elaborações do pensamento." 

Assim, ficou-se apenas pelo pensamento, igualmente irónico "Menta... não é suficientemente forte para ressacas, habibi..." Voltou a colocar o véu e saíu, dirigindo-se para o souk. "Tamr hindi, precisas é de um bom trago de tamr hindi, querido..."

Quando regressou, envolta no aroma das especiarias, encontrou-o já na varanda, alheio ao ruído da cidade e aos apelos do muezzin. Sorriu-lhe docemente, recebendo dele um olhar embaraçado... "Fiz chá de menta...", disse ele num sussurro. Boubouka sorriu ainda mais, e mostrou-lhe uma mão cheia de tamarindos. "Precisas de algo mais forte, habibi..." Ele ainda lhe começou a traduzir Wenceslau, querendo evocar as virtudes e condões do chá. Sabes, diz aqui que "O chá japonez tem a virtude de mitigar a sêde. Assim se explica o habito dos japonezes não beberem agua; mesmo na força dos calores, em pleno agosto, a chavena de chá, saboreada a goles, lhes dá pleno consolo..." Mas o sorriso dela deixou-o sem vontade de argumentar. "Precisas de uma bebida fresca, ácida e estimulante, habibi. Não estamos no Japão. Confia em mim, deixa-me tomar conta de ti..."

 

Photo © Solil

 

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publicado por blogdaruanove às 20:46

Fokker XII, ao serviço da KLM (1936)

 

Boubouka mantinha o seu espaço privado e as suas outras relações afectivas bem longe desta aventura amorosa. Sabia que não passaria disso, apesar de a estadia do amante se ter prolongado já por duas semanas. Os folhetos da KLM estavam agora espalhados pelo quarto, hesitantes cartas de despedida anunciando uma partida inevitável.

A paixão continuava. A atracção do calor e do movimento dos corpos era ainda irresistível. Mas o olhar dele cada vez mais se desviava para as imagens dos aviões... "Já terão colocado os novos Fokker ao serviço? Conseguirei um lugar em breve?", pensava... Não tinha dito a Boubouka que o prolongamento da sua estadia se devia também ao exíguo número de lugares disponíveis em cada avião. Nem mesmo os novos aparelhos de carreira da KLM, os FXVIII, deveriam transportar mais de dez passageiros...

Durante as ausências de Boubouka, passava o tempo cada vez mais intrigado com os relatos de um autor fora de moda, que descrevia o ambiente de Macau no início do século... "Scena domestica. Lá está o meu cosinheiro a bater cabeça, como se diz n'este Macau; lá está elle rezando aos seus deuses protectores. Que lhe preste!"... Estes ritos, para si exóticos, prometiam-lhe um mundo que ultrapassava o imaginável, mesmo para quem já tinha contactado com outras culturas, como a africana... Ah! Mas África não era apenas África, uma só África... Sucederia o mesmo no Oriente?

Todos os relatos de Wenceslau de Moraes lhe pareciam misteriosos, como aquela outra impressão de Macau, que ele registara... "O que faria aquelle bando de leprosos, que a policia da colonia surpreendeu e agarrou? O que faria aquelle bando de leprosos, além no meio do rio, sobre um miseravel barco, pela noite velha, tenebrosa e fria, ora pairando e deslisando ao grado da corrente, ora remando manso, de margem para margem, em vigia?..."

Veio-lhe à memória o velho conceito medieval da nave dos loucos. E imaginou dezenas, centenas, milhares de  loucos acotovelando-se numa pequena embarcação. De repente, intrometiam-se na sua imaginação personagens dos quadros de Bosch. Guinchando, uivando, acenando! E reclames luminosos, piscando e anunciando: Futuro! Futuro! E o nome desconhecido de Katherine Porter! (Quem seria aquela?) E um navio viajando entre o México e a Alemanha... o Vera! (Que era aquilo? Nunca tinha viajado naquele navio, nunca tinha ido ao México...!) E datas, repetidas, sempre as mesmas: 1931! 1962! 1963! 1931! 1962! 1963! (1931? Nesse ano estava em Angola... 1963? O ano de nascimento da sua neta, mas então já estava morto, tinha acabado de morrer nesse mesmo ano... Uma neta? Morto? E que raio estaria ali a fazer o 1962?...)

Levantou-se, cambaleando, enquanto tentava mover desajeitadamente lábios e língua, pensando, mais que dizendo, para si próprio: "Diabo! Se umas simples fumaças de narguilé me deixam assim neste estado, em Macau tenho que me acautelar..." 

 

Fokker XVIII, ao serviço da KLM (1936)

 

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publicado por blogdaruanove às 11:39

05
Fev 10

 

A escala em Port Saïd trazia-lhe à memória a estadia em Angola. Quatro anos. S. José do Lubango e Luanda. A frescura do planalto e a brisa marítima do litoral. Uma vida calma. Mais dois filhos. E um troféu da carreira de tiro de Luanda. Belo troféu. Um caçador em trajo da Baviera, penacho no chapéu, colocando cartuchos na caçadeira. O seu orgulho. Todos os outros atiradores haviam ficado de olho nele... Devia ter sido isso que lhes distraíra a pontaria.

Mas o Egipto era bem diferente de Angola! África, sim, mas outra África. Não tivesse ele navegado brevemente ao longo das margens do Nilo,  enquanto o navio escalava as proximidades do Caïro, e diria que o país não era um país. Antes um extenso deserto. Um outro calor. Mais seco, mesmo à beira-mar. 

As mulheres, no entanto, misteriosas e atraentes. Em todas adivinhava as coxas roliças, as ancas generosas, a estreita cintura de bailarinas. Sob as vestes, todas ensaiavam uma lenta e sedutora dança do ventre. Sob o véu, todas pronunciavam ternas palavras... Palavras cheias de encanto, numa língua desconhecida... Na medina, jovens passeavam recatadas, junto das mães. As vestes deixando uma fragância adocicada, logo absorvida por pequenos botões de resina aromática. Os ramos de noiva expostos nos ourives. Incenso e coral. O coral dos ramos de prata reflectindo-se na cor de alguns brincos. O incenso regressando à rua. As vozes misturando-se com risos de alegria. Todo aquele movimento parecendo uma irresistível dança colectiva, convidando-o a descobrir a cidade. E as promessas da madrugada.

Antes de a noite acabar, envolto pelos braços e pelas consoantes ciciadas de Boubouka, tinha já tomado uma decisão. As coxas longas e tépidas da dançarina prendiam-no. O serpenteante umbigo  hipnotizava-o. O longo cabelo perfumado cegava-o. Deixaria partir o Sibajak. Seguiria no próximo avião.

 

 

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publicado por blogdaruanove às 18:20

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