09
Fev 10

Bilhete postal circulado em 1918, de Singapura para o Brasil.

 

Três dias depois estava em Singapura. O calor recordou-lhe Angola. Mas aqui a humidade era maior. Deambulou pela cidade, como sempre fazia, de máquina fotográfica a tiracolo. Ia sorrindo. Saudava sempre os novos lugares com um sorriso. Ainda que fosse um sorriso melancólico, como este.

Aquela cidade tropical parecia o modelo perfeito da organização colonial inglesa. A Companhia Britânica da Índia Oriental tinha desempenhado bem o seu trabalho no século XIX. E o governo da rainha Victoria não aproveitara menos bem o enorme potencial da região quando a coroa assumira a administração do território, décadas mais tarde... Em pouco mais de cem anos Singapura passara a ser uma próspera e exemplar cidade colonial... Continuou a sorrir, desta vez com ironia... Sob a administração da coroa, quem teria passado a lucrar com o tráfico de ópio?

O artificial aspecto britânico da colónia mal escondia, porém, toda a vivacidade e originalidade das terras asiáticas. Os britânicos administravam e dominavam. À superfície. Bem lá no fundo, nos bairros dos arredores, afastados da hierarquia ocidental, predominavam outras hierarquias e outros costumes.  

Encontrou um laboratório fotográfico numa rua próxima da Cavanagh Bridge. A troco de umas moedas conseguiu a revelação para o mesmo dia. Aquelas casas estavam habituadas a turistas endinheirados e passageiros apressados. O trabalho de dois ou três dias fazia-se em poucas horas, desde que bem pago. No Oriente, como em todo os lados, o dinheiro abria quase todas as portas.

Tinha de admitir que era um fotógrafo inveterado. Amador, mas inveterado. Um maníaco das imagens. Por isso queria as películas logo reveladas. Sabia que a humidade não era grande coisa. Nem para europeus, nem para máquinas fotográficas, nem para películas...

Jantava-se cedo nos trópicos. Pouco depois de o sol se pôr levantou-se da mesa e foi recolher as fotografias. Não conferiu nem abriu o pacote. Levou-o de imediato para o Sibajak e depositou-o na mesinha do camarote.

Na manhã seguinte, já ao largo, encontrou as fotografias espalhadas pelo camarote. A única fotografia em que ele aparecia, tirada por um prestável e sorridente ciclista, um fotógrafo ocasional convencido através de aturada gesticulação, tinha a sua imagem completamente riscada. A tinta verde. Uma tinta que ele muito bem conhecia.

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 20:26

05
Fev 10

 

A escala em Port Saïd trazia-lhe à memória a estadia em Angola. Quatro anos. S. José do Lubango e Luanda. A frescura do planalto e a brisa marítima do litoral. Uma vida calma. Mais dois filhos. E um troféu da carreira de tiro de Luanda. Belo troféu. Um caçador em trajo da Baviera, penacho no chapéu, colocando cartuchos na caçadeira. O seu orgulho. Todos os outros atiradores haviam ficado de olho nele... Devia ter sido isso que lhes distraíra a pontaria.

Mas o Egipto era bem diferente de Angola! África, sim, mas outra África. Não tivesse ele navegado brevemente ao longo das margens do Nilo,  enquanto o navio escalava as proximidades do Caïro, e diria que o país não era um país. Antes um extenso deserto. Um outro calor. Mais seco, mesmo à beira-mar. 

As mulheres, no entanto, misteriosas e atraentes. Em todas adivinhava as coxas roliças, as ancas generosas, a estreita cintura de bailarinas. Sob as vestes, todas ensaiavam uma lenta e sedutora dança do ventre. Sob o véu, todas pronunciavam ternas palavras... Palavras cheias de encanto, numa língua desconhecida... Na medina, jovens passeavam recatadas, junto das mães. As vestes deixando uma fragância adocicada, logo absorvida por pequenos botões de resina aromática. Os ramos de noiva expostos nos ourives. Incenso e coral. O coral dos ramos de prata reflectindo-se na cor de alguns brincos. O incenso regressando à rua. As vozes misturando-se com risos de alegria. Todo aquele movimento parecendo uma irresistível dança colectiva, convidando-o a descobrir a cidade. E as promessas da madrugada.

Antes de a noite acabar, envolto pelos braços e pelas consoantes ciciadas de Boubouka, tinha já tomado uma decisão. As coxas longas e tépidas da dançarina prendiam-no. O serpenteante umbigo  hipnotizava-o. O longo cabelo perfumado cegava-o. Deixaria partir o Sibajak. Seguiria no próximo avião.

 

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 18:20

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