As ruas que conseguia distinguir de sua casa haviam desaparecido. Eram agora um conjunto vivo de linhas onduladas e estonteantes, saindo de corpos comprimidos, soltando sons desencontrados. Os diálogos pareciam solitários monólogos perdidos entre a neblina que saía de todas aquelas bocas. Estava a ficar frio. Voltou a ter arrepios. Nunca sentira frio nas ruas de Macau, nem mesmo em Janeiro, quando as noites haviam chegado a ter temperaturas negativas.
Olhava atónito para o hálito translúcido e apressado que acompanhava cada frase. Não se arrepiava por causa do frio. Arrepiava-se por todos aqueles sons que lhe causavam estranheza. Parecia ter esquecido todas as frases e todas as palavras aprendidas até ali. Aquelas pessoas falavam agora de coisas de que nunca falavam ao longo do ano. Perdida a linha familiar das ruas, só os aromas lhe diziam que sim, que aquela era a mesma cidade que ele julgava conhecer.
Parou, encostando-se às colunas de S. Domingos. O trajecto entre sua casa e a loja de Tchang era curto, mas nunca lhe parecera tão longo. Parara porque necessitava de se preparar. Não sabia o que poderia esperar daquela celebração. Tchang e Liang, que lhe pareciam tão familiares, poderiam parecer-lhe tão estranhos como estranhas lhe pareciam agora as ruas e a cidade.
Inquietou-se. Levou as mãos aos bolsos, verificando os pequenos presentes. Ficou inseguro. Sentir-se-iam insultados por eles? Imaginava o seu ar constrangido e embaraçado quando duas figurinhas se aproximaram, ondulando entre a multidão. Faziam lentas e respeitosas vénias, sorrindo levemente. Ao fundo, atrás delas, estava Tchang, também sorridente. Aguardavam-no, já. À porta de casa, em sinal de cerimonioso respeito.
Então ele, um estranho, um estrangeiro naquela cultura, endireitou-se e dirigiu-se, também sorridente, em direcção a Tchang, enquanto as frágeis figurinhas iam abrindo caminho. Pareciam ter a dignidade de duas pequenas esculturas animadas, duas esculturinhas Fu, saídas de alguma grande casa senhorial.
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