23
Mar 10

publicado por blogdaruanove às 23:34

04
Mar 10

 

Levantando o olhar, viu que Liang trazia nova oferta. Uma peanha de mogno polido, com um recorte interior onde o mosqueado da madeira se diluía. Liang passou-a para as mãos do tio-avô, retirando-se novamente. Quando regressou, os seus dedos brancos e esguios fundiam-se com a beleza e a graça de uma cabeça em porcelana.

Tchang recebeu-a e colocou-a cuidadosamente na peanha, entregando-lha depois com um silêncio solene. Era uma cabeça quase tão grande como a de uma pequena criança, retirada provavelmente de uma antiga estátua de grandes dimensões. Não fez qualquer pergunta quando a recebeu. Apenas sorriu. E então viu o sorriso no rosto de Liang, que se assemelhava ao que tinha entre mãos. Um sorriso ténue, mais do olhar que dos lábios.

Nada perguntou depois sobre a origem da cabeça nem sobre o seu significado. E nada lhe disseram. Mas lembrou-se de Matsu e do templo de A-Ma. Matsu, a deusa dos mares, dos pescadores e dos mareantes.

No sudoeste da península, rodeado de árvores, o pequeno templo surpreendera-o na primeira visita. No interior, a escuridão das  pedras consagradas ressaltava inesperadamente e as suas inscrições ofereciam-se ao olhar. O vermelho-vivo, as cores gritantes, os aromas, tornavam o ambiente feérico e davam-lhe uma sensação de vertigem e enjôo. Tivera que sair, rapidamente, para acalmar o olhar. E a calma sobreviera quando dera as costas à colina da Barra e se virara para o mar. Então, com os olhos embalados no movimento das ondas que quase se fundiam com o céu, o enjôo foi-se desvanecendo. 

Talvez agora aquele rosto e aquelas memórias fossem um sinal. Talvez estivesse na hora de conhecer as ilhas e de ir até Hong-Kong... 

publicado por blogdaruanove às 23:53

03
Mar 10

 

Por entre os aromas, as cores e as vozes, o rosto de Liang ergueu-se. Uma sorridente lua cheia, pairando por instantes sobre a mesa, iluminando o enlevado olhar do convidado. Um olhar que se perdia nos movimentos suaves que a faziam levitar e a levavam para além da sala.

Regressou pouco depois, acrescentando solenidade ao sorriso quando entregou uma pequena caixa de madeira a Tchang. O ancião recebeu-a com cerimónia, sorrindo também para Liang. "Obrigado, Xue", disse. Estranhou aquele tratamento, que misturava duas línguas e lhe lembrava o chamamento que pela primeira vez o levara a entrar na loja.

Tchang estendeu então as duas mãos para o convidado, oferecendo-lhe a caixa com grande solenidade. Recebeu-a, aguardando as palavras que deviam acompanhar a oferta, como era tradicional. E as palavras vieram, breves e sincopadas. "Para que deixe a sua marca onde quiser e quando quiser. Um pequeno sinete. Por favor aceite-o como prova da nossa amizade."

Aceitou em silêncio, sorrindo e baixando levemente a cabeça. "Aceito, com grande regozijo pela nossa amizade", disse depois. E nada mais acrescentou. Sabia que o resto da satisfação deveria ser traduzida por gestos e expressões de admiração perante o objecto.

Notou que a caixa era folheada a madeira de carvalho. Madeira de veios largos e longos, madeira de árvore velha. Poderiam ter utilizado qualquer uma das muitas e preciosas madeiras orientais. Mas não, haviam escolhido precisamente o carvalho. Madeira que teria vindo da Europa, ou então do Japão. Não era comum na China. Sabiam o seu significado para os europeus.

Levantou cuidadosamente a tampa. No interior, entre a sumptuosidade de um veludo carmim e o aroma da cânfora, estava o sinete. Uma peça delicada, com um dragão cinzelado em espiral. Símbolo da longevidade. Levantou os olhos para Tchang, que leu o agradecimento no seu olhar e lhe disse: "Está em branco, para que possa colocar as iniciais que entender, quando entender".

Lembrou-se do leque em branco que lhe haviam oferecido no Sibajak e das palavras que acompanharam a oferta: "Um leque destes lembra-nos o resto da nossa vida, os anos que ainda temos para viver, aquilo com que queremos preencher esse espaço. Sempre poderemos escolher o tecido e a decoração a nosso gosto..."

Liang olhava-o também. E assim ficou o seu olhar, suspenso entre Tchang, o sinete e Liang. "Em que estás a pensar?", perguntou a si próprio. Não, não queria pensar, nem queria sentir.

 

© Rua Onze . Blog

publicado por blogdaruanove às 14:22

02
Mar 10

 

À entrada, estendeu a Tchang a tacinha de prata, que a recebeu juntando as mãos, honrando a oferta como se honrasse o convidado. Delicada e atenciosamente, virou a sampana para ver o fundo da taça, onde estava a imagem de Chang Kai-Chek. "Aah! Wai Kee...", murmurou, sorrindo, ao ver a marca do ourives.

Fez depois um gesto a uma serviçal, entregando-lhe cerimoniosamente a taça. Esta lavou-a uma e outra vez, secando-a e enchendo-a com uma bebida cor de mel. Entregou-a de seguida ao convidado. Tchang acenava-lhe levemente, sugerindo que a aceitasse. "Seja bem-vindo! O que era seu passou a ser meu, a nossa refeição passará a ser a sua."

Bebeu. Um líquido fino e adocicado, que escorria tão facilmente como a água. Devolveu a taça à serviçal, que de novo a lavou e encheu, entregando-a a Tchang. Só então Liang se aproximou, saudando-o respeitosamente. O seu olhar deixava transparecer uma alegria íntima que mal se notava no sorriso. Recebeu o envelope vermelho das mãos do convidado com o recato que se esperava dela, obtendo antes, com o olhar, a aprovação do tio-avô.

Outra serviçal veio receber o terno enfeitado que ele também acabara por trazer, levando-o para a cozinha. Enquanto a porta se abria e fechava, os aromas da comida chegaram à sala e a vertigem que sentira nas ruas voltou. Tudo se misturava, tudo era indefinido, nada tinha um só cheiro.

Mal conseguira chegar à mesa e mal se sentara quando a comida começou a ser servida. Carnes preparadas de mil e uma maneiras. Não conhecia a maior parte dos pratos. Foram-lhe dizendo. Capela de porco, galinha assada, galinha kai-pin, inhame chau-chau com lap-yôk, lacassá, ló-pak-cou, margoso lorcha, missó cristão, pato pák-sáp, chau-chau de pele. Uma explosão de vapores, de aromas e de cores.

A vertigem continuava com os vegetais, o peixe e o cheiro de balichão nos temperos. Couve recheada, couve-flor frita, chai de bonzo, yeu pin, casquinha de caranguejo. E prolongava-se com os doces. Genetes, doce de camalenga, fatias da china, doce de cha-cha, saransurável. Ainda não provara nem metade de tudo aquilo e já se sentia satisfeito.

Mal seguia as conversas, mal recordava as palavras. Apenas via com clareza expressões de satisfação e sorrisos nos rostos que o rodeavam.

 

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 14:19

01
Mar 10

 

As ruas que conseguia distinguir de sua casa haviam desaparecido. Eram agora um conjunto vivo de linhas onduladas e estonteantes, saindo de corpos comprimidos, soltando sons desencontrados. Os diálogos pareciam solitários monólogos perdidos entre a neblina que saía de todas aquelas bocas. Estava a ficar frio. Voltou a ter arrepios. Nunca sentira frio nas ruas de Macau, nem mesmo em Janeiro, quando as noites haviam chegado a ter temperaturas negativas.

Olhava atónito para o hálito translúcido e apressado que acompanhava cada frase. Não se arrepiava por causa do frio. Arrepiava-se por todos aqueles sons que lhe causavam estranheza. Parecia ter esquecido todas as frases e todas as palavras aprendidas até ali. Aquelas pessoas falavam agora de coisas de que nunca falavam ao longo do ano. Perdida a linha familiar das ruas, só os aromas lhe diziam que sim, que aquela era a mesma cidade que ele julgava conhecer.

Parou, encostando-se às colunas de S. Domingos. O trajecto entre sua casa e a loja de Tchang era curto, mas nunca lhe parecera tão longo. Parara porque necessitava de se preparar. Não sabia o que poderia esperar daquela celebração. Tchang e Liang, que lhe pareciam tão familiares, poderiam parecer-lhe tão estranhos como estranhas lhe pareciam agora as ruas e a cidade.

Inquietou-se. Levou as mãos aos bolsos, verificando os pequenos presentes. Ficou inseguro. Sentir-se-iam insultados por eles? Imaginava o seu ar constrangido e embaraçado quando duas figurinhas se aproximaram, ondulando entre a multidão. Faziam lentas e respeitosas vénias, sorrindo levemente. Ao fundo, atrás delas, estava Tchang, também sorridente. Aguardavam-no, já. À porta de casa, em sinal de cerimonioso respeito.

Então ele, um estranho, um estrangeiro naquela cultura, endireitou-se e dirigiu-se, também sorridente, em direcção a Tchang, enquanto as frágeis figurinhas iam abrindo caminho. Pareciam ter a dignidade de duas pequenas esculturas animadas, duas esculturinhas Fu, saídas de alguma grande casa senhorial. 

 

© Rua Onze . Blog

publicado por blogdaruanove às 16:15

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