28
Fev 10

 

Lá fora o barulho das celebrações continuava. A multidão percorria as ruas em êxtase, numa alegria inconcebível para a maior parte dos chineses noutros dias, sem saber muito bem para onde ia, nem porquê. Muitas pessoas pareciam andar pelas ruas sem destino. Tal como ele parecia divagar sem qualquer finalidade.

Teria que se levantar e sair, para honrar a promessa feita a Liang e agradecer a hospitalidade de Tchang. Mas o esforço parecia-lhe enorme. Levantar-se. Convencer-se que teria de movimentar o corpo, que teria de conviver com outras pessoas... Parecia-lhe inútil a conjugação de todo aquele esforço. Sentiu-se tão minúsculo como um netsuke. Encerrado na caixa de segredo que lhe haviam oferecido, era um daymio erecto, de madeira dura, mas sem espada. Um daymio que se fundia com o labirinto de madeira perfumada e macia da caixa, diluindo-se nos aromas que dela se evolavam...

Ergueu-se. Caminhou para as janelas e abriu as gelosias de cima, de par em par. Deixou que a luz o magoasse, entrando-lhe pelos olhos bem abertos. Olhou para as ruas, para  a multidão, para o mar, deixando-se penetrar pela luz e pelo ruído. "Em que estás a pensar?" Sorriu. "There are more things, Horatio..." Shakespeare recordado e treslido, um sonho de uma noite de verão num fim de tarde oriental. Sentir e recordar era melhor que pensar.

Sentiu vontade de se perder na multidão, de ser levado sem destino por aquela torrente.

Irreflectidamente, despiu-se e ficou na penumbra, sentindo a aragem que vinha da rua. Esteve assim breves momentos, até sentir a pele arrepiada. Lavou-se depois com água tépida. Fez a barba uma e outra vez, escanhoando-se aqui e ali. Afinal, era Ano Novo. O seu primeiro Ano Novo Chinês!

Surpreendeu-se com o murmúrio cantarolado que lhe ia saindo das narinas. Viu no espelho o esboço de um sorriso de satisfação. Afinal estava contente...

Vestiu-se e precipitou-se para as escadas, descendo ritmadamente os degraus, de dois em dois, e voltando às vezes atrás, como se estivesse a ensaiar um passo de dança.

Entrou na rua como se aquele fosse o seu mundo e nunca tivesse estado em nenhum outro sítio. Aquele era o seu mundo, aquela era a sua vida. Ninguém mais a poderia viver, ninguém mais a poderia sentir.

 

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27
Fev 10

Macau, cerca de 1937.

  

Deitou-se novamente, atravessando-se na cama. A visão familiar da ventoinha alinhada com os seus olhos parecia-lhe agora inquietante. Perplexo com esta impressão contraditória, levantou-se para ligar o interruptor. Alongou-se depois desde a cabeceira até aos pés da cama, de olhos abertos, deixando-se hipnotizar pela monótona sonoridade do motor e pelo movimento quase imperceptível da hélice. Ficou assim durante alguns momentos, alheado de tudo, concentrado apenas naquele zunido circular. Ficou, assim, sem pensar em nada.

"Em que estás a pensar?", perguntavam-lhe em rapaz, quando o viam alheado. "Em nada", respondia. "Em nada?", perguntavam com expressão de surpresa e desdém, "Como é possível pensar em nada?" E tinham razão. Ao fim de algum tempo acabava sempre por pensar... em algo.

Muitas vezes, aquilo em que pensava acabava por ser um rememorar do que não fizera, ou do que não dissera, e deveria ter dito, ou feito. Um deve e haver desequilibrado, em que sempre ficava a dever algo ao passado e àquilo que não havia feito, ficando sempre em dívida para consigo mesmo.

Voltou a pensar em Boubouka. Teria gostado mesmo dela? Teria ela gostado dele, apesar daquele seu desapego, tão invulgar nas mulheres latinas? Tinham sido um do outro, como se nenhum deles quisesse ser dono do outro. Não tinham havido promessas nem compromissos... Mas então, por que lhe teria ficado aquele sentimento de desamparo e aquela sensação de promessa por cumprir?

Parecia-lhe que os movimentos da ventoinha apenas acentuavam a circularidade da sua própria reflexão, cercando-o, imobilizando-o e trazendo-o de volta ao ponto de partida.

Fechou os olhos, tentando desistir de ver ou de pensar.

"Em que estás a pensar?"

"Não estou a pensar, estou apenas a sentir."

 

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26
Fev 10

 

Por vezes pensava que aquelas súbitas e inexplicáveis mudanças de humor raiavam a insanidade. Sentia-se em muitas ocasiões transportado para um mundo onde nada mais existia senão insatisfação e tristeza. E uma imensa saudade de vidas que nunca tinha vivido.

Parecia-lhe agora que as emoções da sua breve vida com Boubouka se sobrepunham à imagem de Liang, como se fossem uma projecção de momentos e sentimentos que nunca pensara partilhar, sequer, com Liang.  

Deitou-se de olhos fechados na cama, como se estivesse exausto, como se a luz que entrara pelas gelosias lhe tivesse sugado as forças. Lembrou-se de abrir os olhos, mas não conseguiu resistir à paz proporcionada pela cegueira avermelhada das pálpebras fechadas. Deixou o tempo passar naquele mundo que decidira não ver. 

Muito depois, abriu os olhos e viu a ventoinha parada, no tecto. Era uma visão estranha, aquela. Desde que chegara a Macau, habituara-se a ver as ventoinhas em constante movimento, no hotel. Das poucas vezes que as vira paradas, quando estava deitado, vira sempre as hélices alinhadas com os seus olhos, como que prolongando-se à esquerda e à direita. Agora, notava que estas hélices se alongavam da sua cabeça até aos pés, dando-lhe uma estranha sensação de desconforto. Era como se o medissem, como se fossem uma pequena fita métrica distorcida, encurtando-o e reflectindo aquilo que se passava dentro de si.

Estranhou-se a si próprio, ao insistir nestas ideias estranhas. Nunca se perdera assim dentro de si.

Ouviu o ribombar dos panchões. Levantou-se. Da varanda, via os intermináveis cordões de luz a estrelejarem, desaparecendo em sons que ecoavam pelas ruas até quase se perderem no mar.

Em baixo, por entre a multidão, viam-se as hap ló pairando sobre as cabeças ou esquivando-se entre as dezenas de pernas e braços. Hap ló! Tinha que levar uma lembrança para Tchang! Tinha que lhe mostrar a sua gratidão pelo convite e desejar-lhe as maiores felicidades para o novo ano. Deveria levar uma daquelas caixas de doces tradicionais ou antes um terno enfeitado, como faziam todos os macaístas convidados por chineses?

Para Liang seria fácil. Levar-lhe-ia algum dinheiro da sorte num pequeno envelope vermelho, como se fazia para as crianças e pessoas solteiras. Sorriu para si mesmo, corrigindo-se... Levar-lhe-ia algum lâi si num hong pau... Agora dava consigo a pensar nas duas línguas...

Lembrou-se depois de uma tacinha em prata que havia comprado. Achara-a curiosa. Representava uma sampana. Só quando a virara é que se apercebera da sua particularidade. Havia sido feita em Hong Kong, por Wai Kee, a partir de uma moeda chinesa de prata. Um dólar. A base era constituída pela efígie de Chang Kai-Chek. Seria certamente uma maneira delicada de desejar um bom ano a Tchang, sem o insultar com qualquer lâi si, inapropriado para a sua idade ou o seu estatuto.

 

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25
Fev 10

 

Às oito. Saúde e fortuna...

Demorara a habituar-se. A simbologia oriental dos números era bastante distinta da ocidental. Inicialmente, estranhara a ausência  do três, da trilogia sagrada, entre os números da sorte. Depois notara que esse era precisamente o único número que não integrava nem a lista dos números da sorte, nem a lista dos números de azar. Um número único, portanto...

Ocorreu-lhe, então, brincar com o conceito da prova dos nove. Mil novecentos e trinta e sete. Noves fora, dois. O seu segundo ano em Macau. O segundo ano de uma vida que lhe parecia diferente.

Caminhara absorto neste jogo, tendo chegado a casa quase sem se aperceber do barulho ou da multidão. Haviam-lhe trazido a mobília na semana anterior. Mudara-se logo. Subia agora as escadas, estranhando o ranger quase murmurado da madeira. Nos outros dias, no maior silêncio das ruas, parecia-lhe insuportável e indiscreto aquele ranger. Estranhava hoje o quase silêncio dos degraus, como nos outros dias estranhava o seu ruído.

Deixara as gelosias fechadas, como se quisesse coar aquele barulho que o acordara manhã cedo. O barulho da multidão, o barulho da cidade, o barulho do ano novo. As paredes das salas pareciam feitas de uma luz baça, interrompida pelas sombras fortes, listadas, que entravam pelas janelas. 

Encostou a sua testa a uma das gelosias da varanda, fechando os olhos, tentando ver as sombras que entravam. Viu-se no Caïro. Viu o sorriso de Liang no rosto triste de Boubouka.

Não conseguiu suportar aquela imagem. Empurrou bruscamente as gelosias, abrindo os olhos à dor que a luz trazia.

Ofegante, fitou o mar, ao longe, diluindo naquela distância a sua dor. 

 

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publicado por blogdaruanove às 15:59

24
Fev 10

 

Surpreendeu-se com aquele olhar frontal e sorridente de Liang. Um farol no meio daqueles vultos ondulantes. Frágil, singelo, simples. De uma simplicidade intensa e poderosa. Um farol. Dois pontos de luz. Uma luz negra e hipnotizante. Nunca Liang havia olhado directamente para ele. Nunca Liang havia levantado os seus olhos para ele. Nunca. Nem na loja do tio-avô, nem na sua imaginação.

Mas agora, avançando entre a multidão, olhava-o bem nos olhos e sorria-lhe. Quando chegou junto dele baixou o olhar, continuando contudo a sorrir, com a cabeça bem levantada. A sua voz, também baixa e suave, parecia ouvir-se distintamente, sobrepondo-se ao ruído caótico daqueles milhares de vozes.

"O meu avó gostaria de ser honrado com a sua presença na nossa casa", sussurrou o  sorriso de Liang. E ele não via nada mais a não ser aquele sorriso. As próprias palavras do convite eram um sorriso, de aroma impossível, indizível, impondo silêncio e perplexidade.

Ouviu o silêncio do seu próprio aceno como se não soubesse falar, como se soubesse que quaisquer palavras seriam supérfluas e se diluiriam naquele sorriso. Um sorriso que era tudo e tudo absorvia. Liang viu a satisfação dele, adivinhando a sua concordância. "Às oito," disse, "às oito da noite na loja de meu avô." Pela primeira vez naquele dia dobrou-se perante ele, fazendo uma vénia e desaparecendo entre dezenas de outros sorrisos. Sorrisos de alegria aos quais faltava, no entanto,  a frescura mágica do rosto de Liang.

Nem sequer se questionou sobre a coincidência de encontrar Liang no meio da multidão. Nem sequer estranhou o convite. Não pensou sequer em todas aquelas estranhas coincidências. Aceitou-as como se aquele fosse o seu destino. Mais uma vez, deixava-se levar pela corrente...

Não sabia o que o futuro lhe traria, nem queria saber. Queria apenas lembrar o sorriso de Liang, um sorriso que ainda lhe enchia os olhos e o pensamento.

Dezenas e dezenas de panchões rebentavam ruidosamente pelas ruas, estrelejando, iluminando a felicidade que ia nos rostos, criando uma luz mágica que anunciava o novo ano. E ele, compartilhando aquela felicidade no seu rosto, sentia-se flutuar por entre a multidão, alheio a tudo e todos, transportado lentamente num pesado búfalo que parecia levitar...

 

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publicado por blogdaruanove às 14:55

23
Fev 10

 

"Logo à entrada ouve-se o canto do grilo...". Confúcio. Ocorreram-lhe estas palavras de uma canção de ano novo quando caminhava entre a multidão. Nan-ning!, Nan-ning!, diziam as pessoas, alvoroçadamente, nas ruas. Nan-ning!, Nan-ning!, diriam, certamente, centenas, milhares, milhões de pessoas, em Macau e na China, à chegada do novo ano.

Uma miríade de pequenos papéis, ondulando na brisa da manhã, transformava os desenhos dos búfalos num filme de Walt Disney, anunciando o novo ano. Manadas de búfalos, isolados e silenciosos, moviam-se desordenadamente entre as pontas retorcidas dos quadradinhos de papel, que mostravam o outro lado sempre que a aragem soprava com mais força. Desenhos esbatidos de búfalos, páginas onde os traços mal se viam, páginas quase em branco. Um memorando para as subtilezas e adversidades que poderiam surgir ao longo do ano.

Aquele dia surpreendia-o. Sabia de antemão que era o mais sagrado dos dias para os chineses, mas nunca esperara assistir a tamanha mudança, em Macau. As portas das lojas, que pareciam eternamente abertas, encontravam-se agora todas encerradas. As pessoas, que já se acotovelavam frequentemente durante os outros dias, pareciam agora constituir um vasto campo de arroz, de hastes unas e flexíveis, ondulando ao vento. Não parecia haver espaço entre elas, ocupando as principais ruas da cidade velha. Todos os rostos sorriam, como se nunca tivessem tido outras expressões.

Entre a cortina ondulante de rostos e sorrisos, entre a multidão, vislumbrou um rosto mais sorridente que os outros. Lembrava uma lua cheia de Janeiro, brilhando mais que a mais brilhante das estrelas. Uma lua cheia adornada de sedosas faixas de um negro inacreditável. Uma lua aromática, de cheiros inebriantes. Uma combinação quase impossível. Sândalo, jasmim, laranjeira. O seu luar perfumado encurtava distâncias, sobrepondo-se a todos os outros aromas, fazendo-o esquecer tudo o resto.

Era Liang, que caminhava de rosto levantado, olhando para ele e sorrindo. Sorrindo sempre.

  

Brinco de Leão (Seng Si ou Mou Si). Macau, cerca de 1937.

 

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publicado por blogdaruanove às 16:51

22
Fev 10

 

Nunca entendera muito bem aqueles súbitos impulsos para deambular pelas ruas e comprar objectos de que não necessitava verdadeiramente. Alguns amigos achavam que era apenas uma maneira de compensar a solidão, o vazio da vida. Não compreendiam que os impulsos passavam também pela sua necessidade de encontrar continuamente coisas novas, de descobrir diferentes mundos. Pequenos mundos que encerravam sempre surpresas e satisfaziam a sua vontade de se sentir incompleto, desejoso de uma busca contínua, interminável.  

Era já lusco-fusco quando saíra da loja. Lusco-fusco. Quão esquisita lhe pareceu aquela palavra depois de passar meses a ouvir outras línguas. Aquela, como muitas outras palavras. O Português parecia-lhe já uma língua alheia, onde descobria sonoridades inesperadas, tropeçando em palavras que nunca julgara poderem soar de maneira tão estranha.

Só então se apercebeu que falara muito pouco desde que chegara  a Macau. De Português, apenas o indispensável para manter o protocolo com os serviços. Falava cordialmente, sugerindo uma afabilidade de trato que escondia a sua aversão pela burocracia e pelas reuniões sociais. Nessas ocasiões sorria, também. Sorria mais para que o deixassem sozinho consigo mesmo e com a sua liberdade do que para evitar que pensassem nele como um pária esquisito e intratável. De Cantonês ou Mandarim apenas aquilo que as circunstâncias exigiam, gesticulando mais do que falando. Sorriu para si mesmo, quando aquele pensamento lhe ocorreu... A gesticulação acabava por ser extremamente útil. Era também uma das linguagens favoritas de muitos chineses.

Nas ruas a agitação aparentava ser maior do que a habitual. Preparava-se a tradicional inumação das efígies de Tsao Wang, o Deus da Cozinha. À meia-noite cumprir-se-ia o ritual. Cheiros espessos, adocicados e quase enjoativos, cercavam todos os ruídos de cada edifício, envolvendo-os, enovelando-os, deixando-os como pegajosas nuvens de algodão em rama. Andar por andar, janela por janela, pessoa por pessoa, palavra por palavra, até que quase nada se conseguisse dizer. Assim o exigia a tradição. Doces bolos de mel. Era o aroma dos doces que se preparavam em honra de Tsao Wang, para que nos céus não falasse demasiado mal da família que o acolhera durante um ano. Dez dias, apenas. Faltava muito pouco para que chegasse o seu primeiro ano novo chinês.

 

  

Macau, cerca de 1936.

 

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publicado por blogdaruanove às 14:47

21
Fev 10
 

Entrara pela primeira vez na loja de Veng Seng Long algumas semanas antes, num fim de tarde de nuvens baixas e chuva inesperada. Lembrara-lhe logo os bazares do souk do Caïro, onde costumava ir sem Boubouka para se poder perder sozinho nas imagens, nos sons e nos aromas. Acima de tudo, gostava de se perder no tempo. Perdendo-se no tempo, perdia-se a si próprio, perdia a solidão.

Talvez fosse esse o sentimento que então o levara àquela loja. Um desafio ao tempo, mas também um desafio aos seus avatares. Ainda se lembrava das imagens que havia pouco tempo o tinham atormentado durante a noite, no hotel.

Esta loja era muito diferente da de Tchang. Não que fosse muito mais iluminada, mas alguma da soturnidade misteriosa que envolvia os recantos do pequeno estabelecimento de Tchang desaparecia aqui perante o brilho dos metais e os relevos das estatuetas. Aqui, exaltava-se a beleza dos objectos, disfarçando muitas vezes a sua inutilidade com os detalhes da harmonia e da elegância do corte ou do desenho. Lá, desdenhava-se o supérfluo, fazendo-se o elogio singelo de simples botões, que ora mantinham a decência, ora antecipadamente sugeriam o seu desaparecimento, em momentos mais íntimos.

O mistério, aqui, perpassava entre o fulgor dos bronzes polidos e o brilho, suave, tangível, do castanho-alaranjado dos cobres, pairando sobre o salão principal. Sob esta claridade misteriosa, ali e além, pequenas estátuas de metal e madeiras aromáticas pontuavam aqueles brilhos, como faróis que mantivessem a noção de terra firme. A casa era célebre pelo seus bronzes decorados e pelo acabamento perfeito das peças. Não sendo uma loja de luxo, mantinha uma invejada aura de prestígio. Dizia-se que a própria família do comendador Lu-Lim-Ioc, um dos grandes senhores de Macau e Cantão, falecido havia quase dez anos mas ainda largamente lembrado e venerado, costumava abastecer-se no estabelecimento.

Depois de algumas deambulações lentas, escolheu um conjunto de travessas cinzeladas com motivos vegetais e inscrições alusivas à sorte e à felicidade. Na hora de pagar recordou a conversa que tivera na visita anterior, quando perguntara se eventualmente também venderiam peças antigas. Dissera-lhe o dono que para antiguidades seria melhor procurar em Hong-Kong. Os ingleses tinham hábitos de colecção mais arreigados que os portugueses e em Hong-Kong havia inclusive uma casa de antiguidades que fornecia os grandes coleccionadores da Europa e da América – a casa Komor & Komor, na Ice House Street.

Sorrira. A casa Komor & Komor… Provavelmente não teria dinheiro nem para comprar a mais insignificante das peças que ali estaria à venda. Mas agora que a sua viagem às ilhas e a Hong-Kong se tornava imperiosa e cada vez mais inadiável havia recordado o casal japonês do Sibajak. Sempre poderia visitar a Komor & Komor e depois adquirir alguma peça na loja dos seus antigos companheiros de viagem.


Macau, cerca de 1936.
 
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publicado por blogdaruanove às 15:43

20
Fev 10


 

Aquela agitação natalícia toda, mais interior e nostálgica do que exterior, uma agitação nunca experimentada no ambiente de Macau, levou-o novamente à loja de Veng Seng Long.

Recordava as horas, infindáveis, que passara no sótão da casa dos avós, remexendo em antigos baús e peças de mobiliário, maravilhando-se com a mínima descoberta, por insignificante que fosse. Um vidro inútil, manchado e esquecido, uma ferramenta abandonada a um canto, um velho jornal com notícias do século passado.

Certo dia encontrara um embrulho de papel amarelado, quase escondido junto ao forro inclinado do tecto. Ansioso, a tremer, desembrulhara-o, acabando por descobrir uma imagem, em madeira, de Cristo na cruz. Sem braços. Sem cruz. Tocara-lhe levemente com as mãos nuas, impuras da sujidade, sentindo um leve tremor quando passara os dedos pelos joelhos ensanguentados da imagem. O caminho do Calvário...

Lembrava-se de ter pensado nisso, naquele momento. Perguntara a si próprio se também viria a ter um calvário, fado que parecia inevitável a toda a gente. Todos nós haveríamos de ter um calvário, certamente. "Todos temos de carregar a nossa cruz...", diziam as velhas da sua meninice à porta da igreja, encolhendo vagarosamente os ombros sob os xailes negros. Acompanhavam o gesto com um leve inclinar de cabeça e um lento franzir de testa. Os suspiros conformados vinham depois, perdendo-se na aragem do fim da tarde.

Quando começara a viajar sempre se interrogara, inquieto, sobre tal calvário, procurando adivinhar se aquele desterro voluntário significaria o início do seu calvário. Calvário... As pessoas nunca pensavam nisso, provavelmente, mas o calvário era a solidão. A solidão que Jesus sofrera na via sacra era o verdadeiro calvário. Abandonado por tudo e por todos. Até por Deus. Até por si próprio.

E assim, para vencer o seu calvário, entrara naquele bazar de maravilhas que era a loja de Veng Seng Long. Teria a ilusão de estar acompanhado e a felicidade de se perder entre o cálido brilho dos metais, procurando iluminar a memória de um sótão condenado às trevas quase desde a infância.



Macau, cerca de 1936.

 

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publicado por blogdaruanove às 20:40

Macau, cerca de 1936.

 

Sempre tinha sido assim, em todas as outras cidades. Acabara por morar nas zonas que mais o tinham atraído logo de início. Sem qualquer surpresa. Sem que fizesse qualquer esforço nesse sentido. Tudo fluíra naturalmente. Tinha sido assim em Angola. Era assim, agora, em Macau.

A agitação natalícia da comunidade portuguesa levou-o a pensar um pouco mais na família, pela primeira vez em muitos meses. Estranhamente, não sentia saudades. Sentia apenas nostalgia dos rituais de Natal, da infância junto dos pais e avós. Sentia nostalgia de si mesmo, num outro tempo.

Casara, tivera filhos, mas o seu sentimento de família era algo vago, sustentado mais pela memória da infância e dos antepassados do que pela realidade familiar que ele próprio gerara.

Era-lhe mesmo indiferente a solidão em que viveria aquele Natal. Alimentava-se das memórias e dos aromas do passado. O frio das longas e silenciosas noites de inverno. A brancura das manhãs cobertas de geada. O calor da lareira. O bacalhau e os fritos da consoada. A missa do galo, quando já era mais crescido. A alegria do almoço de Natal. As rabanadas. Os sonhos. A aletria debruada a canela.

Uma aletria que viera redescobrir nas variedades, doces e salgadas, das massas chinesas. Massas que o surpreenderam e maravilharam, como quando descobrira a gelatinosa e transparente massa de arroz. Uma canela cujos sabores e aromas viera reencontrar, mais acentuados, numa infinidade de pratos que complementavam a estranha sonoridade  do nome de uma outra canela, especial. Em grandes pedaços de casca, em pau, em pó – kuei hua... A canela do estreito de Macassar.

Seria aquele o seu Natal. Seriam aquelas memórias e aquelas descobertas a sua família. Seria ele próprio Pai Natal e criança deslumbrada pelas luzes feéricas das ruas e das montras.

Para atenuar qualquer sentimento de distância e afastar quaisquer remorsos familiares, decidiu enviar um postal de boas-festas para Portugal. Chegaria certamente muito depois da passagem de ano.

 

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publicado por blogdaruanove às 10:37

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