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Fev 10

 

Abraçava Boubouka de olhos fechados. Contudo, via-a. Mas parecia-lhe outra. Morena, sim, mas de olhos amendoados. Uns olhos que lhe davam um olhar ainda mais doce. Um olhar rasgado, misterioso, oriental. Aparecia agora à distância. Trazia consigo uma bilha e sorria, como Boubouka sempre sorrira. Mas esta era uma outra Boubouka, adolescente, quase criança. Caminhava para ele, ondulando as vestes beduínas. Caminhava lentamente, abrindo os braços, carinhosamente. Aproximava-se deixando ver  os lábios carnudos, prontos a beijar. Um beijo dado à distância... O beijo voava. Voava para ele. Transformava-se em palavras. Palavras pequenas, silenciosas. Que cresciam, atroando o ar, atordoando-o. "Quem és tu?... Quem és tu?..." As palavras envolviam-no. Estava rodeado de espessa neblina.

"Não sei, não sei... Não  me perguntes!" Ouvia-se a si próprio. Gritava.

A neblina ganhava contornos dourados. E pétalas. Dezasseis pétalas. Parecia um crisântemo. Um crisântemo cheirando a saké. As pétalas desdobravam-se. Eram agora trinta e duas e começavam a girar. Uma pequena sombrinha de seda e finas varas de bambú, girando, girando. Viu-se no sopé do monte Fuji, admirando as cerejeiras em flor. As pétalas, de um rosa quase branco, caíam. Eram flocos de neve. Uma neve seca, leve. Estava frio, mas tinha sede. Juntou as mãos para derreter a neve, tentando sorvê-la entre os dedos, unidos em concha.

Levantando o rosto, para beber, viu que a sombra provinha das folhas de uma tamareira. Estava no deserto. Ao longe, caminhando lentamente, alguém trazia uma bilha. Água, concerteza. Era Boubouka, de novo, sorridente. Entreabriu os lábios para receber a dádiva. Ansiava pela frescura daquela água.  Não poderia resistir muito mais. Estendeu os braços, as mãos, os lábios. Recebeu um beijo. E deslizou na escuridão, deixando-se envolver pela noite.

 

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 20:44

 

Aceitou o saké oferecido por um casal de japoneses que regressava a Hong-Kong. Negociantes de antiguidades. Haviam escolhido a colónia pela sua posição estratégica. Na China, junto da Indochina e perto do Japão, tinham um posicionamento ideal para o negócio. Recebiam mercadoria de várias civilizações, negociavam essencialmente com europeus e americanos. Era pelo menos o que davam a entender. Estranhou que não houvesse mais qualquer coisa... A Manchúria era motivo de muitas movimentações...

De meia idade, o casal tinha sido discretíssimo até então. Com a proximidade de horizontes conhecidos, animaram-se e retomaram uma sociabilidade adequada à profissão. Ele controlado nos ademanes mas expansivo no discurso. Mais recatada e silenciosa, ela, como seria de esperar numa esposa nipónica. Nem parecia o casal em que mal reparara havia alguns dias. E então aquela ideia do saké... Viajavam com ele, certamente, pois o navio nunca servira tal bebida. Uma maneira muito japonesa de conservar rituais e preservar a cultura, mesmo à distância. Perguntou-se se o chá não seria mais adequado, mas depois lembrou-se que a cerimónia requereria condições que o navio não oferecia. Além disso, pensariam certamente que os europeus eram mais entusiastas de outras bebidas, de preferência com álcool...

Deram-lhe uma minúscula taça de porcelana com uma calota de vidro no fundo. Já tinha ouvido falar daquelas taças... Depois de cheias mostrariam nitidamente uma imagem. Ultimamente, retratos de gueixas. Coisas para os estrangeiros. Não seriam certamente peças de estimação para o casal.

Surgiu-lhe um sorridente rosto feminino. Tão sorridente como o do comerciante japonês, esperando uma manifestação de surpresa do estrangeiro. Agradeceu-lhe, elogiando a engenhosidade da ideia e dizendo que já tinha ouvido falar daquelas "preciosidades". O comerciante devolveu-lhe o agradecimento, mais sorridente ainda. Pensava certamente que o seu convidado, um ocidental ignorante das verdadeiras preciosidades do oriente,  considerava mesmo aquela tacinha vulgar como uma preciosidade. Não lhe teria ocorrido que o estrangeiro queria apenas ser simpático e educado, como os japoneses são ensinados a ser.

Ofereceram-lhe mais saké. Não estando habituado àquela suave bebida de arroz, foi aceitando sucessivas ofertas. O sorriso da gueixa começou a parecer-lhe desfocado, mesmo com a taça cheia. A pretexto de se deitar cedo, desculpou-se, agradeceu a companhia e deu as boas-noites ao casal.

Já no convés, praguejou, como só praguejava quando se julgava sózinho. O navio parecia balançar mais do que o habitual. O camarote parecia nunca mais chegar. A porta parecia não se querer abrir.

Desistiu de se tentar despir. E voltou a ver-se nos braços de Boubouka.

 

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 09:40

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