27
Fev 10

Macau, cerca de 1937.

  

Deitou-se novamente, atravessando-se na cama. A visão familiar da ventoinha alinhada com os seus olhos parecia-lhe agora inquietante. Perplexo com esta impressão contraditória, levantou-se para ligar o interruptor. Alongou-se depois desde a cabeceira até aos pés da cama, de olhos abertos, deixando-se hipnotizar pela monótona sonoridade do motor e pelo movimento quase imperceptível da hélice. Ficou assim durante alguns momentos, alheado de tudo, concentrado apenas naquele zunido circular. Ficou, assim, sem pensar em nada.

"Em que estás a pensar?", perguntavam-lhe em rapaz, quando o viam alheado. "Em nada", respondia. "Em nada?", perguntavam com expressão de surpresa e desdém, "Como é possível pensar em nada?" E tinham razão. Ao fim de algum tempo acabava sempre por pensar... em algo.

Muitas vezes, aquilo em que pensava acabava por ser um rememorar do que não fizera, ou do que não dissera, e deveria ter dito, ou feito. Um deve e haver desequilibrado, em que sempre ficava a dever algo ao passado e àquilo que não havia feito, ficando sempre em dívida para consigo mesmo.

Voltou a pensar em Boubouka. Teria gostado mesmo dela? Teria ela gostado dele, apesar daquele seu desapego, tão invulgar nas mulheres latinas? Tinham sido um do outro, como se nenhum deles quisesse ser dono do outro. Não tinham havido promessas nem compromissos... Mas então, por que lhe teria ficado aquele sentimento de desamparo e aquela sensação de promessa por cumprir?

Parecia-lhe que os movimentos da ventoinha apenas acentuavam a circularidade da sua própria reflexão, cercando-o, imobilizando-o e trazendo-o de volta ao ponto de partida.

Fechou os olhos, tentando desistir de ver ou de pensar.

"Em que estás a pensar?"

"Não estou a pensar, estou apenas a sentir."

 

© Blog da Rua Nove

publicado por blogdaruanove às 14:07

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